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Sobre Vírus, Livusias, Ilhas e Discos Voadores

Márcia Nóbrega

A imagem de uma ilha, para mim que passei minha infância nos confins do sertão pernambucano, era tão pitoresca quanto a de um disco voador. De alguma forma, a ideia de uma porção de terra cercada de água por todos os lados era quase tão insólita quanto a de uma porção de material metálico extraterreste cercada pelo ar. Mas havia uma diferença: ao menos um disco voador comportava algum ser (talvez verde e viscoso, talvez cabeçudo com a ponta do dedo incandescente clamando ao telefone para voltar pra casa). Já uma ilha me remetia a um deserto, a algo desabitado (ou, quando muito, ocupado por uma palmeira-coqueiro ou uma ave ou lagarto quase pré-histórico).

Hoje desconheço algo que seja menos extraterrestre que uma ilha. O que alguns amigos que vivem em uma ilha no rio São Francisco (e com os quais tive o privilégio de passar largas temporadas) me disseram é que vivem num meio de rio, afogados na areia. São intraterrestres, poder-se-ia dizer. Habitam uma terra inconstante, que se move ao contato com a força das correntezas do rio. Longe de promover isolamento, uma ilha é pura conectividade: caminha ilha, caminha gente, mas não apenas. Me contaram também de uma sorte de seres invisíveis com os quais estão habituados a caminhar; é o caso das almas, por exemplo.

Estamos em plena Quaresma e a coincidência temporal e sonora entre este tempo e a quarentena tem me feito pensar um bocado. Em especial, me faz pensar se o hábito de meus amigos da ilha de caminharem junto ao que não se pode ver não lhes dá uma certa vantagem sobre nós, em nossa obsessão com um certo materialismo pobre e pouco pragmático.

Na ilha, Quaresma é tempo de penitência, quando desde que se entendem por gente, homens e mulheres caminham três vezes por semana durante à noite para cuidar das almas que estão por ali. As mulheres saem no cordão das Alimentadeiras de Almas, os homens no cordão dos Penitentes. Neste ano, de forma inédita e sem precedentes, me informaram que, por conta da ameaça do vírus, acharam por bem “cancelar” os cordões.

“E as almas, como ficam?” — perguntei a uma delas.

“E eu sei?”, deu-me uma bela risada. Em seguida, já séria, completou: “Deus não quer da gente o impossível”. Disse ainda que não deixariam de rezar e acender velas, desde que de suas respectivas casas.

Esses dias recebi deles um vídeo de sua quarentena. Jovens e adultos brincavam de bola no terreiro em frente as casas, como tantas vezes vi suas crianças fazerem enquanto os mais velhos ocupavam-se em suas lutas laborais. Dias antes, recebi a informação de que haviam suspendido a travessia da ilha à terra-firme: só entram e saem moradores, quase todos parentes, desde seus próprios paquetes.

“Mas e o vírus? Vocês sabem que vírus sobe em paquete, né?” — brinquei, falando sério.

“Mulher, a gente aqui tá melhor que vocês aí que vivem trancados em casa. A casa aqui é a ilha”, sorriu. “Mas não se preocupe, mãe está bem. Tu sabe como ela teima. Estamos vigiando os velhos e os doentes. Bênção, agora, só de longe. Estamos entre nós”.

A água os protegia do perigo invisível do vírus, e a ilha, toda ela, conforma o espaço da casa.

Estas conversas têm me feito pensar que, a seu modo, assim como não ignoram a presença das almas, também não ignoram a ameaça do vírus. O que não quer dizer, obviamente, que almas e vírus sejam a mesma coisa. Trata-se menos de uma identificação entre um ser e outro, do que de uma tecnologia para lidar com os efeitos imprevisíveis daquilo que não se pode ver, mas que, potencialmente, existe e nos afeta.

“Não é porque a gente não vê uma pedra que está ali que se eu tropeçar nela, não vou cair”, disse a mim anos atrás uma amiga que, por idosa, tem as vistas anuviadas. “Bem assim é com os espíritos”, explicou-me: “não é porque a gente não vê que eles não estão ali”. E me puxou de canto, desviando levemente a rota de nossa caminhada.

Este “ali”, no caso, são lugares que chamam “de livusia” — marcações topográficas (quase sempre uma encruzilhada) georeferenciadas pela sobreposição da incidência dos efeitos em seus corpos: uma lapada nas costas, uma rasteira nos pés, zumbidos que não se sabe de onde vem.

A Quaresma é um tempo invertido: é quando as almas estão no centro do mundo, e nós, seres encarnados, estamos por aí girando em torno delas. A tarefa do cordão das Alimentadeiras de Almas, neste tempo, é percorrer tais espaços: é onde acendem velas e rezam benditos e ladainhas às almas para que elas fiquem onde estão. Em tempos normais, minha amiga me ensinou, desviar para não obviar. Em tempo de Quaresma, as Alimentadeiras dizem, não obviar para não esquecer. Porque, como me disse uma outra amiga de lá, “a gente sabe que nesse mundo de tudo existe”.

A pandemia nos trouxe a indeterminação como nosso guia. Não sabemos onde vamos parar nem quando vamos parar de parar. O vírus está, potencialmente, em todo lugar. Não há sobreposição de efeitos, não há pragmática suficiente que georeferencie os cálculos desta livusia em forma de vírus. Desde a ilha, observam uma nuvem anuviada vinda de São Paulo que aos poucos passa a habitar os noticiários regionais nas estatísticas dos primeiros casos. O que sabem, em sua ciência-baseada-em-evidências, é que a vida se faz na inconstância, no indeterminado, no se deus quiser. E deus nunca quer de nós o impossível, insistem. No caso, o controle dos fins. A nós, resta a capacidade de cuidarmo-nos uns aos outros. E de ter cuidado.

Tenho lido obsessivamente relatos poético-políticos sobre a pandemia. Um deles me chamou especial atenção por correlacionar termos como ilha e isolamento, solidão e empatia. Para a autora, a imposição de uma não socialidade pela quarentena é uma oportunidade para cada um de nós encontrar a sociedade dentro de si e, assim, entender o que é política. Tudo se passa como se o confinamento produzisse empatia, acesso a alteridade, tornando-nos “mais próximos de todas as pessoas isoladas da Terra”.

Longe de ser ingênuo, o texto adverte sobre os perigos das “robinsonadas” — expressão inspirada no viajante explorador que viu-se perdido em uma ilha deserta, deparando-se com a necessidade de construir, sozinho e do nada, uma casa para si. Ela insiste que seu ponto não é o da produção de uma comunidade a partir de indivíduos originalmente isolados, mas de, através da aceitação da solidão, encontrar a sociedade dentro de si.

Pode ser, mas não é bem isso que me dizem meus amigos da ilha. A ideia de um ser sozinho é para eles bastante insólita. Não há sociedade que dispense socialidade. Há sempre algo a nos acompanhar. Mesmo que não os vejamos, espíritos, almas, encantados, caboclos — e , por que não?, um vírus — estão por aí, ao nosso lado. Negar isso é como negar a própria possibilidade de vida. Ao cuidarmos de toda comunidade (entre humano e outros-que-humanos, para usar um jargão de certa literatura) é que cuidamos de nós, é como nos mantemos vivos.

Dia dez de abril é Sexta-feira da Paixão, dia que antecede o Sábado de Aleluia, quando se coloca fim a Quaresma e se começa um tempo novo, o renascimento do Domingo de Páscoa. Especialistas preveem este como sendo a época do início da subida do pico da curva epidemiológica em São Paulo e outras cidades mais afetadas. Ainda que o papa tenha “cancelado” a Semana Santa, orientando aos fiéis para que não comunguem a Páscoa comunitariamente, tenho minhas dúvidas que na ilha sigam esse novo preceito. São mestres na desobediência daquilo que fere sua ética de cuidado e de obrigações. Disso já saberemos. De minha parte, imagino-os, na sexta-feira reunidos em família nos terreiros do entre casas, após o jejum de alimentos e de palavras, trocando presentes, comida; renovando e fortalecendo laços. Imagino-os no sábado saindo para despejar no rio o que sobrou da comida do dia anterior para alimentar os peixes e, logo em seguida, observarem a aleluia despontando no céu (um fenômeno óptico que nunca fui capaz de enxergar, que ocorre por volta das dez horas da manhã e produz o efeito da lua dançando em torno do sol).

Volto a imagem da brincadeira do jogo de bola no vídeo que me foi enviado de sua Quaresma-quarentena. Definitivamente, uma casa na ilha não é o mesmo que uma casa em São Paulo. Aqui, entre paredes, nossos fantasmas são outros. Talvez a nuvem virótica chegue até eles através (não de um disco voador, mas) dos paquetes dos jovens que vão trabalhar nas firmas de agronegócio para abastecer de frutas nosso comércio essencial. Talvez, espero sinceramente que não. Mas sabem que tudo é possível: não sem custo, susto e diante do virus, a vida sempre se faz mesmo é na enfrentância. Desde sua terra e de sua casa-ilha, minha aposta é a de que aprenderemos muito mais com eles do que eles conosco. Sobre cuidado, sobre lidar com evidências, sobre como manter a vida, sobre indeterminação, sobre recomeços.

E eu, daqui de São Paulo, nunca desejei tanto estar ilhada como agora.

[Este texto foi escrito no dia dois de abril, portanto, durante a Semana das Dores: a que antecede, segundo o calendário litúrgico da Igreja Católica, a Semana Santa. De lá para cá (o dia em que estamos publicando este texto, Domingo de Páscoa), muito se passou na ilha. Optei, contudo, em respeitar o tempo do que foi escrito. Registro apenas que, até onde sabem, o vírus ainda não chegou até eles. No invisível, acharam por bem reabrir os cordões de penitência que, como de praxe, se encerrou com o cantar de um galo na madrugada da Sexta-Feira da Paixão. Cearam juntos, trocaram presentes, alimentaram os peixes e observaram no céu a aleluia, apontando o começo de um novo ciclo]